Senhores e caros irmãos espíritas.
Apraz-me vos dar este título porque, posto eu não tenha a vantagem de conhecer todas as pessoas presentes a esta reunião, quero crer que aqui estamos em família e todos em comunhão de pensamentos e de sentimentos. Admitindo, mesmo, que nem todos os assistentes fossem simpáticos à nossas idéias, não os confundira menos no sentimento fraterno que deve animar os verdadeiros Espíritas para com todos os homens, sem distinção de opinião.
Contudo, é aos nossos irmãos em crença que me dirijo mais especialmente, para lhes exprimir a satisfação, que experimento, de me achar entre eles, e de lhes oferecer, em nome da Sociedade de Paris, a saudação de fraternidade espírita.
Eu já havia tido a prova que o Espiritismo conta nesta cidade numerosos adeptos sérios, devotados e esclarecidos, perfeitamente imbuídos do objetivo moral e filosófico da doutrina; sabia que aqui encontraria corações simpáticos, e isto foi motivo determinante para que eu correspondesse ao insistente e grato convite que me foi feito por vários dentre vós, para uma curta visita este ano. A acolhida, tão amável e cordial, que recebi, permitirá que leve de minha estada aqui a mais agradável lembranca.
Certo eu teria o direito de orgulhar-me com o acolhimento, que me é feito, nos diversos centros que visito, se não soubesse que esses testemunhos se dirigem muito menos ao homem do que à doutrina, da qual sou humilde representante, e devem ser considerados como uma profissão de fé, uma adesão aos nossos princípios. É assim que os encaro, no que pessoalmente me concerne.
Aliás, se as viagens que, de tempos em tempos, faço aos centros espíritas só devessem ter como resultado uma satisfação pessoal, eu as consideraria inúteis e as cancelaria. Mas, além de contribuirem para apertar os laços de fraternidade entre os adeptos, também tem a vantagem de me fornecer assuntos de observação e de estudo, jamais perdidos para a doutrina. Idependentemente dos fatos, que podem servir ao progresso da ciência, aí recolho os materiais da história futura do Espiritismo, os documentos autênticos sobre o movimento da idéia espírita, os elementos mais ou menos favoráveis ou contrários, que ela encontra, conforme as localidades, a força ou a fraqueza e as manobras de seus adversários, os meios de combater estes últimos, o zêlo e o devotamento de seus verdadeiros defensores.
Entre estes últimos devem colocar-se na primeira linha todos os que militam pela causa com coragem, perseverança abnegação e desinteresse, sem segunda intenção pessoal, que buscam o triunfo da doutrina pela doutrina, e não pela satisfação de seu amor-próprio; aqueles que, enfim, por seu exemplo, provam que a moral espírita não é palavra vã, e se esforçam por justificar essa notável afirmação de um incrédulo: “Com uma tal doutrina, não se pode ser Espírita sem ser homem de bem.”
Não há centro espírita onde eu não tenha encontrado um número mais ou menos grande desses pioneiros da obra, de desbravadores terrenos, de lutadores infatigáveis que sustentados por uma fé sincera e esclarecida, pela consciência de cumprir um dever, não desanimem ante nenhuma dificuldade, encarando seu devotamento como uma dívida de reconhecimento pelos benefícios morais recebidos do Espiritismo. É justo que os nomes daqueles de que se honra a doutrina fiquem perdidos para os nossos descendentes e que um dia não possam ser inscritos no panteon espírita?
Infelizmente ao lado destes por vezes se acham os meninos terríveis da causa, os impacientes que, não calculando o alcance de suas palavras e de seus atos, podem comprometê-la; os que, por um zêlo irrefletido, por idéias intempestivas e prematuras, sem o querer fornecem as armas aos nossos adversários. Depois vêm aqueles que, só considerando o Espiritismo pela superfície, sem serem tocados no coração, por seu próprio exemplo dão uma falsa idéia de seus resultados e de suas tendências morais.
Sem contradita, eis o maior escolho que encontram os sinceros propagadores da doutrina, pois muitas vezes vêem a obra, que penosamente esboçaram, desfeita por aqueles próprios que os deveriam secundar. É um fato constante que o Espiritismo é mais entravado pelos que o compreendem mal do que pelos que não o compreendem absolutamente e, mesmo, por seus inimigos declarados. E é de notar que os que o compreendem mal geralmente têm a pretenção de o compreender melhor que os outros; não é raro ver noviços que, ao cabo de alguns meses, querem ultrapassar os que têm por si a experiência adquirida em estudos sérios. Tal pretensão, que delata o orgulho, é uma prova evidente da ignorância dos verdadeiros princípios da doutrina.
Que os Espírias sinceros, entretanto, não desanimem: é um resultado do momento de transição que vivemos. As idéias novas não podem estabelecer-se de repente e sem estorvo; como lhes é preciso varrer as idéias antigas, forçosamente encontram adversários que as combatem e as repelem; depois, as criaturas que as tomam pelo avesso, que as exageram ou as querem acomodar a seus gostos ou a suas opiniões pessoais. Mas chega o momento em que, conhecidos os verdadeiros princípios e compreendidos pela maioria, as idéias contraditórias caem por si mesmas. Já vêdes o que aconteceu com todos os sistemas isolados, surgidos na origem do Espiritismo: todos caíram ante a observação mais rigorosa dos fatos, ou só encontram ainda uns poucos desses partidários tenazes que, em tudo, trepam-se em suas primeiras idéias, sem dar um passo à frente. A unidade se fez na crença espírita com muito mais rapidez do que era dado esperar. É que, em todos os pontos, os Espíritos vieram confirmar os princípios verdadeiros; de sorte que hoje há entre os adeptos do mundo inteiro uma opinião predominante que, se ainda não conta com a unanimidade absoluta, é, incontestavelmente, a imensa maioria. De onde se segue que aquele que quer marchar ao arrepio desta opinião, encontrando pouco ou nenhum eco, se condena ao isolamento. Aí está a experiência para o demonstrar.
Para remediar o inconveniente que acabo de assinalar, isto é, para prevenir as consequências da ignorância e das falsas interpretações, é preciso cuidar da divulgação das idéias justas, em formar adeptos esclarecidos, cujo número crescente neutralizará a influência das idéias erradas.
Minhas visitas aos centros espíritas, naturalmente, têm por objetivo principal ajudar os irmãos em crença em suas tarefas. Assim, as aproveito para lhes dar instruções que possam necessitar, como desenvolvimento teórico ou aplicação prática da doutrina, tanto quanto me é possível fazê-lo. O fim dessas visitas é sério e exclusivamente no interesse da doutrina; assim, não busco ovações, que nem são do meu gosto, nem do meu caráter. Minha maior satisfação é encontrar-me com amigos sinceros, devotados, com os quais a gente se pode entreter sem constrangimento e se esclarecer mutuamente, por uma discussão amistosa, em que cada um leva o contributo de suas próprias observações.
Nessas excursões não vou pregar aos incrédulos; jamais convoco o público para o catequizar. Numa palavra, não vou fazer propaganda; só apareço em reuniões de adeptos, nas quais meus conselhos são desejados e podem ser úteis; eu os dou de boa vontade aos que julgam deles necessitar; abstenho-me com os que se julgam bastante esclarecidos para os dispensar. Só me dirijo aos homens de boa vontade.
Se nessas reuniões, excepcionalmente, se insinuam pessoas apenas atraídas pela curiosidade, ficarão desapontadas, pois aí nada encontrarão que as pudesse satisfazer; e se estivessem animadas de um sentimento hostil ou de denegrimento, o caráter eminentemente sério, sincero e moral da assembléia e dos assuntos aí tratados tiraria qualquer pretexto plausível para a sua malevolência. Tais são os pensamentos que exprimo nas diversas reuniões a que devo assistir, a fim de que se não equivoquem quanto às minhas intenções.
Disse de começo que eu não era senão o representante da doutrina. Algumas explicações sobre o seu verdadeiro caráter naturalmente chamarão a vossa atenção para um ponto essencial que, até agora, não foi considerado suficientemente. Certo que, vendo o rápido progresso desta doutrina, haveria mais glória em dizer-me seu criador; meu amor-próprio aí encontraria seu crédito; mas não devo fazer minha parte maior do que ela é; longe de o lamentar, eu me felicito, porque, então, a doutrina não passaria de uma concepção individual, que poderia ser mais ou menos justa, mais ou menos engenhosa, mas que, por isso mesmo, perderia sua autoridade. Poderia ter partidários, talvez fazer escola, como muitas outras, mas certamente não teria, em poucos anos, adquirido o caráter de universalidade que a distingue.
Eis um fato capital, senhores, que deve ser proclamado bem alto. Não: o Espiritismo não é uma concepção individual, um produto da imaginação; não é uma teoria, um sistema inventado para a necessidade de uma causa. Tem sua fonte nos fatos da natureza mesma, em fatos positivos, que se produzem aos nossos olhos e a cada instante, mas cuja origem não se suspeitava. É, pois, resultado da observação, numa palavra, uma ciência: a ciência das relações entre os mundos visível e invisível; ciência ainda imperfeita, mas que diariamente se completa por novos estudos e que, tende certeza, tomará posição ao lado das ciências positivas. Digo positivas, porque toda ciência que repousa sobre fatos é uma ciência positiva, e não puramente especulativa.
O Espiritismo nada inventou, porque não se inventa o que está na natureza. Newton não inventou a lei da gravitação: esta lei universal existia antes dele; cada um a aplicava e lhe sentia os efeitos, posto não a conhecessem.
Por sua vez, o Espiritismo vem mostrar uma nova lei, uma nova força da natureza: a que reside na ação do Espírito sobre a material, lei tão universal quanto a da gravitação e da eletricidade, contudo ainda desconhecida e negada por certas pessoas, como o foram todas as outras leis no momento de sua descoberta. É que os homens geralmente sentem dificuldade em renunciar às suas idéias preconcebidas e, por amor-próprio, custa-lhes concordar que estavam enganados, ou que outros tenham podido encontrar o que eles próprios não encontraram.
Mas como, em definitivo, esta lei repousa sobre fatos e contra os fatos não há negação que possa prevalecer, terão que render-se à evidência, como os mais recalcitrantes tiveram que o fazer quanto ao movimento da terra, à formação do globo e aos efeitos do vapor. Por mais que taxem os fenômenos de ridículos, não podem impedir a existência daquilo que é.
Assim, o Espiritismo procurou a explicação dos fenômenos de uma certa ordem e que, em todas as épocas, se produziram de maneira espontânea. Mas o que, sobretudo, o favoreceu nessas pesquisas, é que lhe foi dado o poder de os produzir e os provocar, até um certo ponto. Encontrou nos médiuns instrumentos adequados a tal efeito, como o físico encontrou na pilha e na máquina elétrica os meios de reproduzir os efeitos do raio. Compreende-se que isto é uma comparação e não uma analogia.
Há aqui uma consideração de alta importância: é que, em suas pesquisas, ele não procedeu por via de hipóteses, como o acusam; não supôs a existência do mundo espiritual, para explicar os fenômenos que tinha sob as vistas; procedeu pela via da análise e da observação; dos fatos remontou à causa e o elemento espiritual se apresentou como força ativa; só o proclamou depois de o haver constatado.
Como força e como lei da natureza, a ação do elemento espiritual abre, assim, novos horizontes à ciência, dando-lhe a chave de uma porção de problemas incompreendidos. Mas se a descoberta de leis puramente materiais produziu no mundo revoluções materiais, a do elemento espiritual nele prepara uma revolução moral, porque muda totalmente o curso das idéias e das crenças mais arraigadas; mostra a vida sob um outro aspecto; mata a superstição e o fanatismo; desenvolve o pensamento e o homem, em vez de se arrastar na matéria, de circunscrever sua vida entre o nascimento e a morte, eleva-se ao infinito; sabe de onde vem e para onde vai; vê um objetivo para o seu trabalho, para os seus esforços, uma razão de ser para o bem; sabe que nada do que aqui adquire em saber e moralidade lhe é perdido, e que o seu progresso continua indefinidamente no além-túmulo; sabe que há sempre um futuro para si, sejam quais forem a insuficiência e a brevidade da presente existência, ao passo que a idéia materialista, circunscrevendo a vida à existência atual, dá-lhe como perspectiva o nada, que nem mesmo tem por compensação a duração, que ninguém pode aumentar à sua vontade, desde que podemos cair amanhã, em uma hora, e então o fruto de nossos labores, de nossas vigílias, dos conhecimentos adquiridos estarão para nós perdidos para sempre, muitas vezes sem termos tido tempo de os desfrutar.
Repito, demonstrando o Espiritismo, não por hipótese, mas por fatos, a existência do mundo invisível e o futuro que nos aguarda, muda completamente o curso das idéias; dá ao homem a força moral, a coragem e a resignação, porque não mais trabalha apenas pelo presente, mas pelo futuro; sabe que se não gozar hoje, gozará amanhã. Demonstrando a ação do elemento espiritual sobre o mundo material, alarga o domínio da ciência e, por isto mesmo, abre uma nova via ao progresso material. Então terá o homem uma base sólida para o estabelecimento da ordem moral na terra; compreenderá melhor a solidariedade que existe entre os seres deste mundo, desde que esta se perpetua indefinidamente; a fraternidade deixa de ser palavra vã; ele mata o egoísmo, em vez de ser morto por ele e, muito naturalmente, imbuído destas idéias, o homem a elas conformará as suas leis e suas instituições sociais.
O Espiritismo conduz inevitavelmente a essa reforma. Assim, pela força das coisas, realizar-se-á a revolução moral que deve transformar a humanidade e mudar a face do mundo; e isto muito simplesmente pelo conhecimento de uma nova lei da natureza, que dá um outro curso às idéias, uma significação a esta vida, um objetivo às aspirações do futuro, e faz encarar as coisas de outro ponto de vista.
Se os detratores do Espiritismo – falo dos que militam pelo progresso social, dos escritores que pregam a emancipação dos povos, a liberdade, a fraternidade e a reforma dos abusos – conhecessem as verdadeiras tendências do Espiritismo, seu alcance e seus inevitáveis resultados, em vez de o atacar, como o fazem, de lançar incessantemente obstáculos no seu caminho, nele vissem a mais poderosa alavanca para chegar à destruição dos abusos que combatem; em vez de lhe serem hostis, o aclamariam como um socorro providencial. Infelizmente, na sua maioria, crêem mais em si do que na Providência. Mas a alavanca age sem eles e apesar deles, e a força irresistível do Espiritismo será tanto melhor constatada quanto mais tiver que combater. Um dia deles dirão – o que não será para sua glória – o que eles próprios dizem dos que combateram o movimento da terra e dos que negaram a força do vapor. Todas as negações, todas as perseguições não impediram que estas leis naturais seguissem o seu curso, como todos os sarcasmos da incredulidade não impedirão a ação do elemento espiritual, que é, também, uma lei da natureza.
Considerado desta maneira, o Espiritismo perde o caráter de misticismo, que lhe censuram os detratores ou, pelo menos, os que não o conhecem. Não é mais a ciência do maravilhoso e do sobrenatural ressuscitada, é o domínio da natureza, enriquecido por uma lei nova e fecunda, uma prova a mais do poder e da sabedoria do Criador; são, enfim, os limites recuados do conhecimento humano.
Tal é, em resumo, senhores, o ponto de vista sob o qual se deve encarar o Espiritismo. Nesta circunstância, qual foi o meu papel? Não é nem o de inventor, nem o de criador. Vi, observei, estudei os fatos com cuidado e perseverança; coordenei-os e lhes deduzi as consequências: eis toda a parte que me cabe. Aquilo que fiz outro poderia ter feito em meu lugar. Em tudo isto fui apenas um instrumento dos pontos de vista da Providência, e dou graças a Deus e aos bons Espíritos por terem querido servir-se de mim. É uma tarefa que aceitei com alegria, e da qual me esforcei por me tornar digno, pedindo a Deus me desse as forças necessárias para a realizar segundo a sua santa vontade. A tarefa, entretando, é pesada, mais pesada do que podem supô-la; e se tem para mim algum mérito, é que tenho a consciência de não haver recuado ante nenhum obstáculo e nenhum sacrifício; será a obra da minha vida até meu último dia, pois ante um objetivo tão importante, todos os interesses materiais e pessoais se apagam, como pontos diante do infinito.
Termino esta curta exposição, senhores, dirigindo sinceras felicitações aos nossos irmãos da Bélgica, presentes ou ausentes, cujo zêlo, devotamento e perseverança contribuíram para a implantação do Espiritismo neste país. As sementes que foram plantadas nos grandes centros de população, como Bruxelas, Antuérpia, etc., tenho certeza, não terão sido lançadas em solo árido.
(da Revista Espírita, Novembro de 1864, tradução de Julio de Abreu Filho,
volume 11 das obras completas de Allan Kardec publicada pela EDICEL, páginas 319-326)